quinta-feira, 27 de março de 2008

Receita para exploração de crianças nas embarcações lusitanas - Século XVI


Ingredientes
50 Crianças pobres, órfãos ou de origem judia e cigana.
Oficiais, marujos, nobres e religiosos a gosto.
01 Embarcação com destino ao Brasil.


Modo de fazer
1. Recrute crianças de origem paupérrima na zona urbana de Portugal. Servem também as judias e ciganas.
2. Submeta-as a trabalhos próprios de adultos nas embarcações que forem para o Brasil ou para a Índia.
3. Prive tais crianças de boas condições de vida entre os embarcados, oferecendo-lhes péssimas acomodações, alimentação de péssima qualidade e nenhum tipo de proteção.
4. Puna com castigos físicos os insubordinados, especialmente os grumetes.
5. Ofereça um tratamento diferenciado aos pagens, aos órfãos Del Rei e às crianças na condição de passageiros.
6. Dê preferência de acesso na balsa de salvamento (batel) aos adultos (oficiais e elemento da nobreza), quando a embarcação estiver à deriva.
7. Em caso de risco de afundamento do batel, lance ao mar primeiramente as crianças.

Resultados
Exploração do trabalho infantil.
Abuso sexual de crianças por marujos, oficiais e passageiros.
Exposição a doenças como pneumonia, escorbuto, inanição, sarampo e caxumba.
Ampliação do índice de mortalidade infantil.
Sobreviventes com traumas para toda a vida.
Sentimento de impotência.
Transformação precoce de crianças em adultos pelo peso da dor e do sofrimento.

Cardápio


PARA A TRIPULAÇAO EM GERAL
Ração
01 libra e ½ de biscoito por dia (bolorento, fétido e roído por baratas).
01 Pote de água por semana (com odor desagradável).
01 arroba de carne salgada por mês (em estado de decomposição).
Peixes secos, cebola e manteiga.

PARA AUTORIDADES
01 libra e ½ de biscoito por dia.
01 Pote de água por semana.
01 arroba de carne salgada por mês.
Peixes secos, cebola e manteiga.
Compotas de açúcar, de mel, de passas, de ameixas secas e de farinhas.
Víveres*.

* Complementação alimentar oferecida pelo mercado negro ativo nas naus.

Conto: "Homem" ao mar!


Trinta dias em alto-mar! O tempo não parece bom para a tripulação, pois anuncia uma possível tempestade. O mar encontra-se agitado, pondo a nau de São Tomé em situação de instabilidade.
De repente, ouve-se o grito de um marujo:
- Homem ao mar!
- Coitado! Esse aí não vai sobreviver. Morrerá afogado ou devorado pelos tubarões – afirma um dos tripulantes que também observara aquela queda.
Em meio à tripulação, um dos nobres corre em direção ao Capitão e clama com desespero:
- É meu filho. Ajude-me a socorrê-lo.
- Ora, meu Senhor. Não temos como salvar o garoto. Será esforço inútil retornar a embarcação, pois ele já se encontra bem distante de nós e, quando chegarmos perto, provavelmente já terá se afogado.
- É meu filho, capitão. Ele sabe nadar. Tenho esperança ainda.
- Não sei se nadar será suficiente para que ele sobreviva, pois à espreita estão sempre os tubarões.
- Mesmo assim, quero que tentem salvá-lo. – grita furioso o nobre - Caso não me obedeça, sabes de minha influência junto à Coroa Portuguesa e que posso...
- Senhor, é preciso calma. Faremos o que for possível.
Dirigindo ao mestre e ao piloto da nau, o capitão ordenou:
- Façam o que nos pede este ilustre homem. Rápido!

Todos os marinheiros ajudaram a deitar o esquife ao mar, para que a nau fizesse a volta, mas esforço foi inútil. Depois de 2 horas do momento da queda, o corpo do menino fora encontrado sem vida.

História da infância nas embarcações lusitanas - Curiosidades


* A história trágico-marítima das crianças é uma história periférica, pouco relatada pelos adultos, isto é, uma história contada nas entrelinhas das narrativas da época.

* A alta taxa de mortalidade infantil – metade das crianças nascidas morriam antes de completar 7 anos de idade; a perspectiva de vida era de 14 anos de idade para as crianças que sobreviviam - influencia numa concepção de criança. Nesse sentido, as crianças eram vistas com “pouco mais que animais” das quais se deveria tirar o máximo de proveito enquanto estivessem vivas.

* O recrutamento de mão-de-obra infantil acontecia junto a famílias pobres das áreas urbanas, por meio de rapto de crianças judias ou por prisão de crianças ciganas.

* A mão-de-obra infantil, em substituição à adulta, tornou-se indispensável à epopéia marítima lusitana.

* As péssimas condições de vida das crianças deixavam-lhes expostas a todo tipo de violência: sodomia, pedofilia, trabalho escravo etc.

* Meninas de 15 anos de idade eram consideradas aptas para o casamento; Meninos de 09 anos de idade eram considerados plenamente capacitados para o trabalho pesado.

* O menor mal para as crianças nas embarcações lusitanas durante os séculos XVI e XVII era sofrer um grande trauma e deixar de ser criança.

Frase


“Em meio ao mundo adulto, o universo infantil não tinha espaço: as crianças eram obrigadas a se adaptar ou perecer.” (RAMOS, 2007, p.48)

REFERÊNCIA

RAMOS, Fábio Pestana. A história trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI. pp. 19-54. In. DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2007.